Lewis Hamilton em campeonato de kart - Reprodução/Redes Sociais
O piloto em testes na McLaren - Mark Thompson/Getty Images
Hamilton e equipe comemorando o sétimo título - PA Images
Lewis Hamilton em campeonato de kart - Reprodução/Redes Sociais
O piloto em testes na McLaren - Mark Thompson/Getty Images
Hamilton e equipe comemorando o sétimo título - PA Images
A grandiosidade de um homem se mede pela altivez de seus gestos, pela magnitude de suas ações, pela inspiração de suas palavras. Ir mais longe, mais rápido, ser o mais forte, o mais companheiro, o mais calculista, o maior de todos. Poucos conseguirão chegar no topo tantas vezes e, ao mesmo tempo, cativar tanta gente, num misto de emoção, lágrimas e orgulho. Pode parecer a introdução de uma história épica e cercada de grandes reviravoltas. Mas é mais do que isso. É o começo de uma paixão quase impossível de explicar. De um roteiro improvável de alguém que superou tudo e todos para estar em meio a mitos, ao lado das lendas. Quem tem a predestinação correndo nas veias, costuma dar conta do recado. Para Lewis Hamilton, é mais do que isso. O heptacampeão mundial se tornou um rei comandando uma fileira de troféus. E foram sete até aqui. É impossível pensar em Fórmula 1 e não imaginar o antes e depois de um carro número 44.
A carreira de um piloto profissional tem quase sempre o mesmo ponto de partida: os carros de kart. Em pistas improvisadas e torneios pequenos, as competições em nada lembram os glamurosos e gigantescos eventos que estamos acostumados a ver nas etapas populares. Jovens do mundo inteiro, que pretendem um dia chegar à elite do automobilismo, começaram dessa mesma forma. São eles que arrumam, e às vezes até concertam, o próprio carro durante as corridas. Com Lewis Hamilton não foi diferente. Ele começou aos oito anos, correndo em competições na Inglaterra. As imagens de arquivo comprovam, ele era mesmo alguém especial. Desde cedo, foi acostumado a estar no lugar mais alto daqueles três degraus que todo piloto almeja. Ganhar os troféus mais cobiçados do mundo do automobilismo é uma diversão que vem da infância. Para ele, pegar no volante e dirigir os carros mais rápidos do mundo é sentir a mesma sensação da primeira vez, como se ainda fosse uma criança superando seus próprios limites.
"Sempre que eu entro no carro de novo, e posso dirigir numa pista incrível e pego uma reta, muitas coisas passam na minha cabeça. Como quando eu via as corridas quando era jovem, observando a engenharia, a sensação. É como se imaginar andando de montanha-russa, mas você tem o controle. Se você tiver o azar, você pode perder o controle. Mas isso é incrível", contou Hamilton em entrevista no ano de 2019, ano que chegou a seis títulos mundiais na Fórmula 1. Obsessivo pela perfeição, ser o melhor em todas as provações. Hamilton tem a mesma mentalidade de um atleta em esporte de alto nível. Mas a forma como isso se reflete na sua carreira vitoriosa é a chave para o sucesso e a popularidade que ganhou entre os fanáticos pela velocidade. Para ele, viver o momento é agarrar as chances com as duas mãos. E que mãos. Foi com elas que guiou máquinas a nada menos que 103 vitórias, em 103 pole positions e 191 pódios durante os 310 GPs disputados até a última etapa de 2022.
A timidez do início da carreira contrasta com o gigantismo que se tornou. O título de Sir ou de cidadão honorário do Brasil faz com que Hamilton seja único dentro do automobilismo. Ao entrar no cockpit, ele é o homem mais poderoso do mundo. "Quando eu cheguei na Fórmula 1, todo mundo era parecido. Todo mundo tinha um padrão. Eu tive que me enquadrar naquele padrão, com aquela lista de coisas. E convencer os outros a me deixar entrar naquele espaço. Quando entrei e me estabeleci, com as minhas regras, pude ser quem eu sou hoje. Acho que hoje em dia, não tem mais isso de padrão. É possível ser o padrão que você quiser. Diziam que só podíamos correr e nada mais, mas eu quebrei essas regras", disse. Engajado em questões sociais, Hamilton também é uma referência quando se fala em discussão ambiental. Por conta disso, se tornou vegano em 2017 e ressalta que isso o ajudou de forma física e mental, adotando um estilo de vida mais saudável.
Antes de ser amado pelo Brasil, Hamilton foi o protagonista de um dos momentos mais surpreendentes da Fórmula 1. No Grande Prêmio do Brasil em 2008, bastava que ele chegasse em sexto lugar para que o brasileiro Felipe Massa, da Ferrari, fosse o campeão daquela temporada. Massa fez sua parte, cruzou a linha de chegada em primeiro e já comemorava o título inédito na categoria. Mas ainda havia um risco e o destino deixou para que a última curva selasse o fim daquela temporada. Hamilton ultrapassou o alemão Timo Glock, da Toyota Racing, que já não carregava o carro em condições para segurar a posição. Com isso, o britânico pula de sexto para quinto a poucos metros do fim da prova e sagra-se campeão por apenas um ponto. Água no chopp da torcida que lotou Interlagos naquele domingo, festa nos boxes da McLaren-Mercedes, equipe defendida por Hamilton naquele GP. Mas a Fórmula 1 é nos detalhes. Em 2021, ele vinha embalado de uma épica vitória em Interlagos, onde ganhou 25 posições e venceu a corrida. No até hoje controverso GP de Abu Dhabi, Hamilton foi ultrapassado por Max Verstappen, da Red Bull Racing, que disputava ponto a ponto o título. Com isso, o piloto inglês perdeu o campeonato nas últimas voltas da última corrida.
Lewis Hamilton e seu pai, Anthony, após o primeiro título mundial no GP do Brasil em 2008 (Reprodução/F1)
Lewis Hamilton e seu irmão no museu da McLaren - Reprodução/Redes Sociais
Aos dez anos, já como campeão infantil de kart, abordou Ron Dennis, chefão da McLaren dizendo que um dia queria ser campeão pilotando um de seus carros. A inocência fez com que Hamilton previsse o seu futuro, ganhando o título exatos dez anos depois. O abraço do pai, Anthony Hamilton, nos boxes de Interlagos é a representação da vitória trilhada em família. Filho que viu os pais separados aos dois anos de idade, Hamilton dormia no sofá da casa dele durante a infância, compartilhando juntos o sonho de chegar no alto de um pódio. Nada veio fácil. Anthony chegou a acumular quatro empregos simultâneos para que não desistisse dos sonhos do filho sem deixar de lado suas responsabilidades. Competir com endinheirados era uma tarefa que ia além do talento em frente ao volante. A compra de um kart, para que a jovem promessa treinasse para virar uma realidade é o esforço recompensador acumulado dentro daquele abraço no Brasil. Em um esporte majoritariamente feito de ricos, Lewis é uma exceção. Uma trajetória rara para os padrões da Fórmula 1.
O talento é inspiração mútua para superar qualquer desafio. O irmão, Nicolas, que convive com as consequências de uma paralisia cerebral após o parto prematuro, também é piloto. Correndo com adaptações no carro, ele está em sua quinta temporada na British Touring Car Championship, tradicional competição de carros de turismo, em pouco mais dez anos de carreira. Campeão na vida e nas pistas.
De onde vem a vontade de superar os limites da velocidade? A explicação tem a ver com uma lenda brasileira das quatro rodas, que também é fonte de inspiração para o atual heptacampeão. "Eu comecei a ver Fórmula 1 com meu pai, aos 5 anos. No fim dos anos 80, começo dos anos 90. Eu amava o Senna. Ele era um líder e um ícone. E foi ele que me inspirou a correr. Eu queria ser o Super-Homem, que seria incrível, ou o Ayrton. Ele continua a me inspirar. Eu sempre quis fazer algo como ele. Eu gosto de dirigir de um jeito similar ao dele", relembrou, em 2019, durante entrevista ao programa Conversa com Bial. Ao se igualar a Senna em número de pole positions, ganhou um presente especial da família do brasileiro, um dos capacetes originais usado pelo brasileiro em corridas. No Grande Prêmio do Canadá, em 2017, a emoção ficou por conta de um gesto eternizado na memória dos torcedores que vibraram das arquibancadas. O britânico ergueu o presente como o troféu mais almejado, que o aguardava a vida toda. Era como seu ídolo estive ali, ao seu lado, orgulhoso do quão longe ele tinha chegado. "Eu não tenho nenhum dos meus troféus expostos, mas tenho o capacete", declarou. Hamilton, um fã incondicional do tricampeão brasileiro, não esconde a sua paixão pelo mito das pistas. Em 2021, durante o GP de São Paulo, repetiu o gesto de Senna, desfilando com a bandeira brasileira no autódromo. A emoção, que tomou conta de Interlagos, marcou para sempre uma geração inteira de fãs. Diferentemente dos carros, acostumados a passarem rápido num piscar de olhos, aquele momento no Brasil ficou eterno na lembrança da torcida. Nas redes sociais, a brincadeira é que Hamilton já faz parte do seleto time de pilotos brasileiros na Fórmula 1.
O jornalista Tiago Mendonça, comentarista de automobilismo do Grupo Bandeirantes, faz um panorama do fenômeno Hamilton no Brasil. "Ídolos nascem naturalmente – e quando falamos do Hamilton, maior campeão de todos os tempos e um cara que transcendeu o esporte, é normal que isso a partir do ponto que ele demonstra carinho pelo Brasil. O brasileiro gosta quando se fala bem do Brasil e tudo o que ele fez na pista se junto a isso para formar o ídolo. Mas é preciso dizer: não é o único. Só ver o carinho pelo Leclerc no aeroporto no ano passado, os fãs da Red Bull. Hamilton tem a maioria, mas a Fórmula 1 vem fazendo outros ídolos por aqui também".
Para Victor Martins, jornalista que está há duas décadas no site Grande Prêmio e também é comentarista dos canais ESPN, o brasileiro ver Hamilton como ídolo no esporte mostra uma mudança de rota em uma tradição da Fórmula 1 no país. "É uma conquista, e tanto, depois de décadas de imposição para se ter necessariamente um brasileiro no centro do mundo da Fórmula 1. Sempre faço a comparação: se tem, ou tinha, um Federer contra Nadal em uma final, o mundo – e o brasileiro – param para ver. Precisou que o Brasil não tivesse um piloto na categoria para os fãs se tocarem de que era possível para torcer por alguém de fora. É claro que em termos de audiência, um [Felipe] Drugovich ou um outro brasileiro qualquer agregariam, e dá para ver como há uma torcida forte por Felipe, ainda mais por este novo público jovem", analisa.
Lewis Hamilton ergue o capacete de Senna para a torcida no GP do Canadá em 2017 (Foto: Reprodução/F1)
Gabriella Neubauer no GP de São Paulo em 2021 - Reprodução/Redes Sociais
Gabriella Neubauer na pista de Interlagos em 2022 - Reprodução/Redes Sociais
Lewis Hamilton com a bandeira brasileira no GP de São Paulo em 2021 - AFP
Basta abrir a porta para perceber que não é uma casa como qualquer outra. Em cada canto que se olha, há um pedaço de uma boa história. Do lado esquerdo, um capacete verde e amarelo em miniatura chama a atenção. Do outro, um traçado marcante enfeita a parede branca como se nada mais importasse. Tem ainda o chaveiro, pendurado na porta, que traz consigo um pneu vermelho, ainda que poucos conheçam o verdadeiro significado dele. É nesse universo que Gabriella Neubauer vive há pelo menos 15 anos. O ronco do motor é o aviso e a vibração das arquibancadas é o combustível para mais uma etapa que mistura competição com emoção. Só um fã de automobilismo sabe a verdadeira sensação de ouvir máquinas voando e pilotos deslizando a trezentos por hora bem pertinho de casa. "A Fórmula 1 pra mim é o momento que eu fico realmente feliz, consigo me desconectar de todos os problemas que eu tenho da vida pessoal, do trabalho. É um momento realmente de lazer, de diversão, é o momento que eu me sinto completa, onde eu consigo focar exatamente naquilo, esquecer os problemas, as coisas ruins. É praticamente o meu hobby". Gabriella foi fisgada pela paixão pela velocidade por causa da família, fãs de Ayrton Senna, e do namorado, Sidney. O relacionamento de uma década se renova a cada fim de semana de grande prêmio. "Quando eu comecei a assistir, meu pai não gostava do Schumacher, porque ele ganhava todas as corridas. E eu gostava muito do Schumacher, do Rubinho, do Massa, veio toda essa alegria de torcer por um piloto brasileiro. Eu me tornei fã mesmo de uns 11 anos pra cá. Brinco que quem é da geração pós-Ayrton Senna tem um pai, uma mãe, um tio, um primo, um amigo que era muito fã do Ayrton e passou um pouco desse amor pelo esporte pra gente".
Morar nos arredores de Interlagos é estar no berço da competição mais nobre do automobilismo, mas nem sempre uma garantia de estar dentro dele. Mesmo assim, o sonho de ver um Grande Prêmio nunca saiu da cabeça da radialista de 27 anos. A escolha não poderia ter sido mais especial. "O GP de 2021 foi o meu primeiro GP presencial. Embora eu já tenha ido a Interlagos para acompanhar outras categorias, esse foi o meu primeiro. E foi insano". Fã de Lewis Hamilton, ela não mediu esforços para acompanhar o ídolo na pista. "Ver o Hamilton ser campeão mundial, lutando por tantas coisas, sem medo de lutar contra o racismo que ele sofria, toda essa parte de mulheres, de pessoas com deficiência, toda essa luta que ele trouxe me fez gostar mais dele. O Hamilton deixou a Fórmula 1 mais humana. Até então, a Fórmula 1 era extremamente fechada, velada, esporte de homem. Ver o lado humano dos pilotos, que o Hamilton trouxe e outros pilotos seguiram, o Lando Norris tem muito isso, o Vettel, foi algo que abriu um caminho direto para que fosse fã dele". E a apresentação mais espetacular estava para acontecer.
Falar de Lewis Hamilton é falar do inimaginável, do grandioso, do arrebatador, de momentos de catarse coletiva que ficarão para sempre na história do esporte. O piloto inglês é um fenômeno que arrasta multidões e o carinho de uma torcida apaixonada. O calor humano é o combustível que o leva para cada vez mais longe. Em Interlagos, que voltava a ver público após um ano sem receber corridas por conta da Covid-19, o britânico provou mais uma vez que não se faz um campeão por acaso. Após a sessão de treinos livres na sexta-feira, para o Grande Prêmio de São Paulo de 2021, Hamilton foi punido pela FIA, a Federação Internacional de Automobilismo, por irregularidade na asa móvel do carro e pela troca irregular de motor. Sendo assim, o piloto largaria na corrida Sprint do sábado na última posição. A prova, mais curta, já seria motivo suficiente para que o piloto britânico corresse, literalmente, contra o tempo para minimizar os prejuízos e sobreviver na luta pelo título daquela temporada. E correu. Um a um, os adversários foram ficando para trás. Um, dois, três, quatro, cinco, quinze vezes. Um pouco provável quinto lugar deu a chance de o piloto largar em décimo na corrida do domingo. "Na sexta-feira, quando o Hamilton foi desclassificado, eu pensei: 'já era, a gente perdeu o campeonato'. Eu já estava superchateada. No sábado, ele largou bem em frente a mim. Eu sempre vou na arquibancada A, e eu gosto de sempre ficar ali para ver o final do grid, ter a emoção de ver os carros de perto, os pilotos de perto, consegue interagir com os mecânicos, com todo o pessoal. Eu tive a oportunidade de ver o Hamilton largando de frente para mim e foi incrível", relembra Gabriella. "Todas as ultrapassagens eram sempre na arquibancada onde eu estava, então a gente conseguia ver ele chegando bem pertinho, bem do lado dos outros pilotos. Foi simplesmente incrível", completa.
Em uma jornada acompanhada por 180 mil testemunhas naquele domingo, Hamilton ganhou cinco posições antes do final da primeira volta. Já na décima oitava, a segunda posição. A distância para o primeiro colocado, Max Verstappen, da Red Bull Racing, que estava em quatro segundos – uma eternidade na Fórmula 1 – já havia caído para menos de meio segundo cerca de dez voltas seguintes. Com uma multidão enlouquecida nas arquibancadas, a volta cinquenta e nove teve um gostinho especial. Após punições negadas por infrações do piloto da Red Bull, Hamilton ultrapassa o holandês na Reta Oposta. "Tinha muito fã do Verstappen lá. E a cada volta, no domingo principalmente, quando ele ia ultrapassando as pessoas, a torcida do Max ia diminuindo, e você não via mais a torcida gritar por ele. Via só as pessoas gritando pelo Hamilton. Porque é uma pessoa que todo mundo gostava muito". A cruzada ruma à glória ganhou momentos especiais. Após a bandeirada final, feita pela campeã olímpica Rebeca Andrade, Hamilton parou seu carro no Bico de Pato e pediu uma bandeira brasileira para um dos fiscais de prova. Desfilando de forma monumental pelo circuito, a emoção foi especial para todos que acompanharam aquele GP. Abraçado na cerimônia do pódio, a bandeira brasileira viu novamente o lugar mais alto depois de mais de duas décadas. "Acho que ninguém esperava. Eu mesma não esperava. Achava que ia dar errado em algum momento, ficava rezando para acabar logo, pensava que o carro dele iria quebrar em algum momento, não pode ser que isso dará certo. E deu", conta a radialista, que não mede elogios ao piloto. "Se você tem a oportunidade de ver o Lewis Hamilton correr, você tem que agradecer. Mas se você teve a oportunidade de ver Lewis Hamilton correr ao vivo, você tem que agradecer de joelhos, porque o talento do cara é algo absurdo e pela TV você não faz ideia", completou.
Muito antes da corrida de 2021, Gabriella já guardava um carinho especial por Hamilton. Ao longo das temporadas seguintes, a admiração cresceu ao passo dos feitos do piloto dentro e fora das pistas. "Quando o Hamilton entrou, ele entrou como uma promessa muito grande. No primeiro ano dele na Fórmula 1 ele já demonstrou um talento muito grande. Eu lembro que isso me chamou atenção na época. Além de ser o primeiro negro, o cara já chegou mandando bala e provando para o que veio", disse. "Eu comecei a acompanhar mesmo lá em 2011 e ele já era campeão mundial. Todo mundo já sabia o tamanho do talento do Hamilton. E ele era fã do Ayrton Senna. Foi muito gostoso ver que tinha um piloto que gostava do seu país, que acompanhava o Senna. Ele desde sempre demonstrou um carinho pelo Brasil. Desde o começo isso me impactou", completa. O roteiro parecia perfeito, mas os sonhos de Hamilton eram maiores a equipe que ele defendeu até a temporada de 2012. "Fiquei um pouco chateada quando ele foi para a Mercedes porque eu gostava da McLaren, porque a McLaren tinha uma história com o Senna. E com a ida do Hamilton, a Mercedes iria brigar pelo título. Foi nessa época que ele conheceu o Niki Lauda, e ele começou a mostrar os projetos que ele tinha. Pela inclusão das mulheres, inclusão de pessoas negras. Sem dúvidas, isso me trouxe um carinho gigantesco por ele. É muito difícil em um esporte majoritariamente de homens você ver alguém falando sobre inclusão de mulheres, batalhando por isso, e querendo fazer a diferença nesse ponto", contou.
A radialista é parte da geração que cresceu vendo a Fórmula 1 e acompanha a nova leva de fãs lotarem as discussões e as arquibancadas mundo afora. Segundo a pesquisa Nielsen/Motorsport, a categoria diminuiu em quatro anos a média de idade desde 2017. Públicos como dos EUA, México e China cresceram em média 50% no mesmo período, com pessoas acompanhando o esporte a menos de cinco anos. O reflexo desse novo momento da Fórmula 1 provoca discussões e preconceito, principalmente em ambiente digital. "Na internet as pessoas ainda acham que é mais fácil, agredir e ninguém ver. Essa briga se estende muito porque eles acham que as mulheres, e mesmo que fosse, é por causa do Drive to Survive, ou por ser novos fãs. Antigamente tinha uma rixa maior dos fãs antigos, mas acho que hoje a galera entendeu. Não é porque a galera é nova, que acompanha a menos tempo, que ela seja menos fã que você", defende.
Abner e Vinícius comemorando vitória da Mercedes - Reprodução/Redes Sociais
Abner Ferreira e capacete usado por Hamilton - Reprodução/Redes Sociais
Abner Ferreira exibe cartões da Mercedes - Reprodução/Redes Sociais
"A Fórmula 1 para mim é o melhor esporte do mundo. É a minha paixão, é meu fascínio. É o único esporte que eu acompanho". Cada etapa de uma corrida é uma emoção diferente. Cada ultrapassagem em retas e curvas ao redor do mundo é um sentimento único. A representação mais fiel de um amor que passa de geração em geração está na sincronia de arrepios que só um verdadeiro fã consegue sentir. "Eu sempre amei a Fórmula 1. Acompanho a categoria desde 1990, quando eu tinha 6 anos. Comecei a gostar desse esporte por causa do meu pai, que não assiste mais depois que o Senna morreu. Meu pai era muito fã do Senna, então a influência veio dele". Na casa de Abner Ferreira, todo fim de semana de Fórmula 1 é uma festa. Entre bandeiras, fotos e bexigas, uma alegria que passa de pai para filho. "Nesses 32 anos que acompanho, eu torci por diversos pilotos como Senna, Damon Hill, Jacques Vilenneuve, Mika Häkkinen, Fernando Alonso, Rubens Barrichello e o maior e melhor de todos os tempos, Lewis Hamilton", conta. A torcida é contagiante. Nas redes sociais, Abner demonstra ao lado do seu filho de 9 anos, o Vinícius, o amor em sua forma mais genuína. "Quando é domingo de Fórmula 1 a gente se arruma, coloca as camisetas que a Mercedes nos presenteou, enfeita a casa para torcer para o Hamilton e para a Mercedes – agora para o Russell também – e assim curtimos a cada GP. Acho que o amor que meu pai tinha pela Fórmula 1, e que passou para mim, eu estou transmitindo para o meu filho".
O ano era 2020. O mundo enfrentava as consequências de uma pandemia arrasadora há pelo menos sete meses. As recomendações eram evitar sair de casa para evitar o contágio pela Covid-19. Por conta disso, arquibancadas nos quatro cantos do planeta estiveram vazias durante todo o ano. Na Fórmula 1 não foi diferente. Com as restrições impostas pelas autoridades sanitárias, cada vitória na categoria era acompanhada de um silêncio ensurdecedor que em nada combinava com a festa de qualquer evento esportivo. Foi nesse ambiente que Abner e seu filho resolveram festejar mais uma vitória do ídolo das pistas. "Eu postei um vídeo ao lado do meu filho comemorando as noventa e uma vitórias do Hamilton, quando ele igualou o mesmo número de vitórias do Schumacher. Esse vídeo viralizou, atingiu mais de 1 milhão de visualizações", relembrou. Os gritos de incentivo, acompanhados do êxtase da vitória renderam muito mais do que um momento naquele 11 de outubro. O vídeo ganhou as manchetes da imprensa, ganhou incentivos e compartilhamento de fãs do piloto, mas o melhor estava por chegar. Um dia depois da postagem, no feriado nacional e em pleno dia das crianças, o perfil oficial da Fórmula 1 repostou o conteúdo em suas redes. O vídeo de Abner com o filho ganhou o mundo. Duas horas depois, o inimaginável. Foi a vez do próprio Hamilton compartilhar nas suas redes sociais. Em uma frase, em seis palavras, em vinte e três caracteres, o reconhecimento singelo que significou muito para a dupla de fãs. O carinho brasileiro era reverenciado pelo maior de todos. Foram quase dois meses vivendo em uma realidade em que todo apaixonado pelo esporte ama estar: falar, ouvir e respirar a Fórmula 1. Em meio a entrevistas e presentes, uma lembrança que ficará para sempre na memória de pai e filho. "Acho muito importante ele gostar de esportes, principalmente ter o Hamilton como ídolo. O Hamilton é um exemplo de esportista, um exemplo de cidadão, um exemplo de ser humano. Meu filho se espelhar em uma pessoa como ele me deixa muito esperançoso. Além da educação e dos exemplos que ele tem dentro de casa, ele pode se espelhar e admirar uma pessoa fora do nosso convívio familiar", conta orgulhoso. "Hamilton não é qualquer piloto. Ele nasceu para esse esporte. Ele não passou dificuldades, preconceitos na infância e na adolescência à toa. O cara foi escolhido a dedo por Deus para entrar em um esporte da elite branca, entrar em um esporte de rico, para ser um grande nome na Fórmula 1. Ele entrou para quebrar toda a banca dos caciques e chefões e para mudar a metodologia, o modo de pensar, o modo de agir desse esporte", completou.
A felicidade de Abner e Vinícius incomodou fanáticos e torcedores rivais. Ele conta que o momento de felicidade e descontração recebeu diferentes ataques naquele período. O fato de ser uma criança com seu pai, comemorando uma marca esportiva do seu ídolo, não fizeram diferença ou amenizou o teor das ofensas. "Eu li muitos comentários de pura agressividade e preconceito, por comemorar uma vitória de um piloto que não era brasileiro. Ou que era negro, que a forma que eu gritei era coisa de gay, que eu estava dando um mau exemplo para o meu filho por torcer por alguém que não era brasileiro e por gritar como um louco. Confesso que particularmente não me abalei com essas ofensas, porque o ser humano está ficando cada vez mais pobre de espírito. Parece que estamos voltando aos tempos das cavernas". No tweet, ainda é possível ver comentários preconceituosos, embora alguns deles tenham sido removidos por violar os termos da rede social. "Eu fiz a minha parte, que foi denunciar as pessoas que fizeram esses comentários e foquei em curtir essa vitória e os meus 15 minutos de fama, com várias entrevistas para a Globo", finaliza.
Parte dos ataques é explicado por razões óbvias. O preconceito contra um piloto negro que levanta e defende pautas em um ambiente historicamente alheio à diversidade. "Ele hoje é fundamental para a Fórmula 1. Acredito que muitas pessoas não gostam dele, não pelos números que ele tem no esporte, mas pelo o que ele faz e representa dentro e fora da Fórmula 1. Meu pai é negro, então eu presenciei muitos episódios de racismo que ele sofreu. Então eu imagino como a elite branca desse esporte, e os haters, se sentem quando olham que o maior piloto da Fórmula 1 é negro e faz questão em incluir todas a pessoas nas suas conquistas, nos seus discursos e no seu dia a dia", conta Abner.
Primeiro e único negro no grid, Hamilton sofreu com o racismo durante toda a sua carreia, além de uma espécie de boicote dos chefões da categoria, cabeças brancas presas no pensamento arcaico do passado. Pautas identitárias, inclusivas e de apoio a minorias atacadas são caras dentro da competição. Um exemplo são as críticas ao ativismo no grid. Atualmente, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) é chefiada pelo emiradense Mohammed ben Sulayem, que vem sofrendo no trato com as equipes. Em 2020, em apoio ao movimento Black Lives Matter, ajoelhou pedindo justiça aos responsáveis pela morte de George Floyd e cobrou os companheiros de cockpit a se posicionarem. A resposta para esses pensamentos que não cabem no século 21 e para indiferença que não cabe nos tempos atuais chega de forma incontestável nas pistas. Na entrevista a Pedro Bial, em 2019, ele relembrou o início da carreira e o preconceito que viveu. "Naquele meio havia muito racismo e nós nem sempre éramos bem-vindos naquele círculo. Mas ficávamos na nossa. Nós sempre competimos e silenciava os críticos com a nossa performance. Depois íamos embora felizes. No meu primeiro título, enfrentei uma criança que a família era de milionários e eles tinham as melhores coisas. Eles contrataram o melhor mecânico, pagando milhares de libras e o meu pai era o meu mecânico. E o volante do menino caiu na última corrida. Eu ia vencer de qualquer jeito, mas o volante dele ajudou. Foi mais doloroso para ele e menos para nós", termina brincando sobre os tempos de kart.
"Para mim, como negro, é um pouco mais difícil. Porque está ficando mais caro. E é mais difícil de ver um jovem, de uma família de classe trabalhadora, porque não tem dinheiro, porque é muito caro. Muitas crianças ricas têm a oportunidade. Eu acho que isso precisa mudar" contou Hamilton. O carinho de Abner e Vinícius por Hamilton é o incentivo que o piloto conquista a cada gesto por igualdade na Fórmula 1. "Ele quer ver negros no grid, ele quer ver mulheres pilotando e dirigindo equipes, ele quer ver todas as pessoas inclusas e respeitadas dentro e fora desse esporte. Ele é essencial para um futuro mais inclusivo, mais igualitário, mais respeitoso. E o melhor é que a Mercedes dá sempre total apoio e liberdade para ele", comemora Abner.
A disparidade na realidade econômica e social de Fórmula 1 é um dos empecilhos que fazem de Abner, um fã incondicional da categoria, nunca ter ouvido os motores potentes da Mercedes de perto. "Eu nunca assisti um GP em Interlagos. Tenho esse sonho desde sempre. Mas os preços são surreais, foge muito da realidade do nosso país. Admiro que tenha coragem de parcelar o valor em dez vezes, pegar dinheiro emprestado, pegar cartão de crédito emprestado para comprar os ingressos. Se um ingresso já é caro, imagina dois. Porque é óbvio que se eu for, eu tenho que levar meu filho. Dois ingressos já ficariam inviáveis para o meu bolso", lamenta. "Infelizmente eu sou pobre e gosto de um esporte de rico. Acho muito injusto pagar um valor surreal no ingresso, adquirir uma dívida para vários meses e muitas pessoas ganham ingressos sem curtir o esporte. Respeito, mas acho injusto", critica. Durante os dias de Fórmula 1, é comum postagens de influenciadores lotar as redes sociais, com fotos de visitas, camarotes e uma questionável torcida por pilotos e escuderias. O ambiente contrasta com o histórico de interesse da grande maioria, que não acompanha o esporte ou não acompanha a categoria de forma natural ao longo da temporada. O movimento, orquestrado por agências de marketing para criar uma sensação de badalação em torno do evento, atingindo determinados públicos, está presente em diferentes setores. Por enquanto, os likes dos fãs estão fora do grid.
Lewis Hamilton e companheiros de grid em ação contra o racismo (Foto: Motorsport Images)
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Primeiro título no GP do Brasil 2008 - LAT Images. Entrevista para o Conversa com Bial em 2019 - Reprodução/TV Globo. Capacete com detalhe do Black Lives Matter em 2020 - Reprodução/Redes Sociais. Vitória no GP de São Paulo em 2021 - F1.com